Medicalização da saúde da mulher: como resistimos?

Juliana Couto Melo • 2 de outubro de 2025

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Quando ciclos viram doença e o cuidado se confunde com controle

A saúde das mulheres sempre foi um território de disputas. Desde os primórdios da medicina ocidental, nossos corpos foram controlados, silenciados e regulados.


Do diagnóstico de histeria no século XIX — que serviu para deslegitimar a voz e os sintomas de mulheres — até a epidemia contemporânea de cesarianas sem indicação médica, o discurso médico muitas vezes reforçou desigualdades e naturalizou abusos.


Segundo a pesquisadora Silvia Federici, a transição para o capitalismo foi marcada pelo controle do corpo feminino: o parto, a menstruação e até a sexualidade passaram a ser vistos como fenômenos a serem vigiados, tirando das mulheres o protagonismo de seus próprios ciclos.


Esse processo abriu caminho para uma lógica em que o corpo feminino deixou de ser sagrado e comunitário para se tornar objeto de intervenção.


Quem nunca ouviu uma história assim?


Uma mulher com dor é chamada de exagerada.
Uma gestante, no momento mais vulnerável da vida, é conduzida (de forma estrutural) a uma cirurgia de grande porte sem precisar.
Uma menina que menstrua cedo já recebe hormônio para “corrigir” o corpo.


É uma lógica que não se limita ao excesso de remédios ou procedimentos médicos: ela opera como um mecanismo de silenciamento.


Entre bisturis e silêncios


A história da medicina é atravessada por práticas de controle.
No século XIX, histeria foi o diagnóstico usado para domesticar qualquer comportamento feminino fora da norma: tristeza, raiva, desejo, insônia. Receituário? Internações, choques, cirurgias.


Silvia Federici mostra que esse processo não foi acaso: controlar os corpos das mulheres foi parte fundamental da construção do capitalismo. O parto saiu das casas para os hospitais. As ervas foram criminalizadas. Parteiras e benzedeiras perseguidas. O corpo deixou de ser território comunitário para virar objeto de intervenção.


Essa engrenagem nunca parou. Só mudou de roupa.


A medicalização acontece quando processos naturais da vida da mulher — como menstruação, parto, menopausa ou luto — são tratados como doenças.

Ela não se restringe ao uso excessivo de remédios ou exames, mas traduz uma lógica em que o corpo feminino é reduzido a objeto de controle, muitas vezes atravessado por interesses econômicos da indústria farmacêutica e hospitalar.


Dados contemporâneos


Avançamos, sim. Mas a engrenagem continua girando.
O Brasil, em 2022, registrou 55,8% de cesarianas, segundo a OMS. Quase o dobro do que é considerado seguro. Na rede privada, esse número passa de 80%. Cirurgias desnecessárias, muitas vezes violentas, que arrancam das mulheres o direito de viver o parto como processo fisiológico.


Outro dado: mulheres negras têm 60% mais chance de sofrer violência obstétrica no Brasil, segundo a Fundação Perseu Abramo. Racismo atravessa a medicalização, e corpos negros são os mais violentados.


E não para aí: em 2020, a Fiocruz mostrou que o Brasil é um dos países que mais consome antidepressivos no mundo, com mulheres liderando as estatísticas. Quantas estão medicadas não porque precisavam, mas porque tristeza, raiva, cansaço — sintomas legítimos da vida — foram reduzidos a “doença”?


As consequências da medicalização


Esse processo não é neutro. Ele gera impactos concretos e profundos:

  • Invisibiliza as subjetividades e singularidades femininas.
  • Mantém e expande formas de violência ao corpo da mulher — muitas vezes atravessadas por questões de raça e classe.
  • Estimula o uso excessivo de medicamentos e intervenções desnecessárias.
  • Desvaloriza saberes ancestrais, comunitários e coletivos, afastando mulheres das práticas de cuidado que não cabem dentro da lógica biomédica.

Resistências possíveis



Resistir à medicalização não significa recusar tratamentos médicos ou negar evidências científicas. Significa, antes, recuperar o direito de sermos autoras das nossas histórias de saúde.


Alguns caminhos possíveis são:

  • Buscar informação crítica, que vá além do discurso biomédico.
  • Reconectar-se com saberes ancestrais e coletivos, que sustentam outras formas de cuidado.
  • Exigir práticas de saúde baseadas em evidências, mas também em respeito e autonomia.
  • Fortalecer redes de mulheres, onde a escuta e a partilha constroem segurança e consciência.

O que está em jogo


A medicalização não é apenas sobre remédios ou procedimentos. Ela revela como a sociedade enxerga o corpo feminino: como objeto, como função social, como algo a ser regulado. Resistir é lembrar que nossos corpos não são engrenagens de uma máquina produtiva, mas territórios de vida, prazer, escolha e dignidade.


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